A Inteligência Artificial Generativa realmente dominou a linguagem como afirma Yuval Harari?
Comunicação e Linguagem
Se há risco na utilização da Inteligência Artificial Generativa, entendo que não está no “[…] domínio da inteligência artificial sobre a linguagem […]” como afirma Yuval Noah Harari.[1]
Faz-se necessário iniciar com uma distinção entre “comunicação” e “linguagem”.
Como afirma Luhmann, “Sem dúvida alguma, existe comunicação sem linguagem […]”.[2] Pode-se realizar comunicação mediante gestos, por exemplo. Pais e mães precisam apenas franzir o cenho para comunicarem para a criança que a atitude dela não está agradando. Uma criança aponta para um sorvete e a mãe pode assentir com um sorriso ou negar com um movimento de cabeça. Por outro lado, a comunicação através da linguagem, falada ou escrita, é uma comunicação muita rica, cheia de possibilidades e fixa o sentido de uma maneira que é impossível através dos gestos.
Sistemas psíquicos e sociais são sistemas de sentido. Evoluíram no meio do sentido. Nossas comunicações estão involucradas pelo sentido. Mesmo o que não tem sentido, utiliza sentido para ser categorizado.
Como afirmei em artigo anterior,[3] quando dialogamos com esses novos algoritmos de Inteligência Artificial Generativa (IAG), estamos conversando com fórmulas matemáticas que manipulam símbolos e não sentido. Eles não conseguem apreender o sentido nos textos que manipulam.
Como exemplo, qual o sentido da expressão: “O que adianta correr como um cavalo para chegar à reunião repleta de bestas com tiras penduradas no pescoço e que por isso se acham o máximo?”
A comunicação é composta por uma unidade de três seleções: o ato de comunicar, a informação e o ato de entender. Em outras palavras, comunicação sempre pressupõe a informação, ego para comunicar e alter para entender, e só se completa, passa a existir, no ato de entender de alter.
A comunicação sempre pressupõe duas ou mais pessoas. Ninguém pode comunicar para si mesmo. Essa é uma diferença importante entre comunicação e linguagem. Nós temos uma fala interior, em que falamos para nós mesmos, muito condensada e abreviada.[4] Isso não significa comunicar. Ao escrever esse artigo me utilizo da linguagem, mas se ninguém o ler não terei comunicado nada.
Em minha frase exemplo, “O que adianta correr como um cavalo…”, dita por ego, tem uma informação com um sentido atribuído por Ego. No ato de entender, alter vai interpretar essa informação e atribuir um sentido a ela — ainda que conclua que não faça sentido. Esses sentidos, de Ego e Alter, podem ser iguais ou diferentes.
Ego e Alter fizeram uso da linguagem para se comunicar, mas ela mesma não garante uma unicidade de sentidos. Dominar a linguagem significa apenas saber lidar com os símbolos. O que vai determinar a comunicação é a capacidade de distinção de alter: ter consciência que outro está falando e interpretar o que ego está dizendo, a partir desses símbolos.
Pensar e compreender vão muito além da manipulação de símbolo observando instruções formais e envolvem interpretação no sentido de conferir significado e conteúdo aos símbolos. A manipulação de símbolos necessita da compreensão de tais símbolos.[5]
A interpretação está ligada à formação de conceitos, conhecimentos, de Alter. Isso está claro quando se vai conversar com uma criança, que ainda está formando conceitos. A informação na comunicação é a oportunidade para que Alter aceite ou recuse, amplie seus conhecimentos ou mantenha seu entendimento anterior.
Fórmulas matemáticas definitivamente não interpretam e não são criativas como os humanos. Como você explicaria o que é o Supremo Tribunal Federal (STF) para uma criança de 7 anos? Enquanto um humano não explicar, a IA jamais poderá criar um texto que permita a essa criança formar um conceito, ainda que aproximado, do STF. Uma IA jamais pensaria em associar o nascimento de bebês com cegonhas, como ainda fazem alguns pais.
O mundo para a IAG e o mundo para o Sistema Psíquico
O mundo para a IAG é um emaranhado de textos manuseados estatisticamente. Não que isso seja pouca coisa e já está demonstrado como esses algoritmos podem ser úteis. Esse “domínio da linguagem”, que nada mais é que a manipulação de símbolos, é um avanço tecnológico importante, mas ainda estamos muito distantes do estabelecimento de sentido pela própria IAG.
Se todos nós combinássemos e colocássemos na internet que o melhor jeito para se beber uma boa caipirinha é com um copo vazio, sem nada, é assim que a IA iria responder a alguém que perguntasse qual é o melhor jeito para se beber uma caipirinha, pois é o que a estatística recomendaria. Embora não faça o menor sentido para os apreciadores da popular bebida brasileira. O computador jamais poderá sentir o efeito que é passar do ponto bebendo demais e aprender por si mesmo.
Ao contrário das IAGs, toda forma que um ser humano observa é julgada, interpretada e um sentido lhe é atribuído. De acordo com Luhmann, esse foi um processo evolutivo que nos fez sistemas de sentido.
O próprio Harari afirma:
Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes de dizer: 'Cuidado! Um leão!'. Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: 'O leão é o espírito guardião da nossa tribo'.[6] [grifos meus]
Esse texto do Harari demonstra que a capacidade de dominar símbolos não é o fundamental. Há algo mais que faz os seres humanos diferenciados. Eles podem interpretar, criar mitos e lendas que não estão presentes no mundo que habitam.
As IAGs estão muito distantes de ter a capacidade de uma formiga, quiçá de um chimpanzé.
Os sapiens podem cooperar de maneiras extremamente flexíveis com um número incontável de estranhos. É por isso que os sapiens governam o mundo, ao passo que as formigas comem nossos restos e os chimpanzés estão trancados em zoológicos e laboratórios de pesquisa.[7]
No atual estágio de desenvolvimento das IAGs eu não vejo qualquer risco de domínio dos humanos ou de extinção da raça humana, muito pelo contrário, os humanos aprenderão a utilizá-las para seus benefícios. Se há risco e pode haver, ainda estamos muito distantes, mas isso explorarei em outro artigo.
[1] HARARI, Yuval. Yuval Harari: O domínio da inteligência artificial sobre a linguagem é uma ameaça à civilização. Disponível em: < https://www.estadao.com.br/internacional/yuval-harari-o-dominio-da-inteligencia-artificial-sobre-a-linguagem-e-uma-ameaca-a-civilizacao/ >. Acesso em: mar. 2023.
[2] LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas; tradução: Ana Cristina Arantes Nasser. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 282.
[3] PEREIRA, Carlos José. Como alguém pode saber e não saber que sabe? Disponível em: <https://www.oanalistadeblumenau.com.br/blog/30/como-algu-m-pode-saber-e-n-o-saber-que-sabe>. Acesso em mar. 2023.
[4] VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e Linguagem; tradução: Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica: José Cipolla Neto. 2 ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998, p. 123.
[5] TAVARES-PEREIRA, S. O machine learning nas decisões: o uso jurídico dos algoritmos aprendizes. Florianópolis: ArtSam, 2021, p. 723.
[6] HARARI, Yuval Noah. Sapiens - Uma breve história da humanidade; tradução: Janaína Marcoantonio. 19ª ed. Porto Alegre - LPM, 2017, p. 32-33.
[7] Ibidem.